
Não foi fácil sairmos inteiros do Uruguai. Para lá, fomos com um planejamento pesado, pontos turísticos de todas as cidades friamente calculados e algumas referências visuais do que encontraríamos por lá revisadas antes de pegarmos a estrada. De nada adiantou. Fomos surpreendidos pelo canibalismo selvagem praticado pelas paisagens de cada lugarzinho deserto, quase que com cara de esquecido, do underground litoral uruguaio. As rutas que seguimos para chegar em cada um de nossos destinos não eram uma prévia, mas sim uma espécie de doma verde, que escondia a possibilidade de que alguma forma de vida habitasse alguns quilômetros adentro.
Isso só nos estimulava cada vez mais, e sempre que desarmávamos o acampamento e voltávamos para estrada, tínhamos um tesão ainda maior em parecer estarmos voltando para a mesma estrada, sem nenhum novo papel de parede que preenchesse o lado externo da nossa mochila sobre rodas. Quando menos esperávamos: uma paisagem extremamente roots e acolhedora aparecia em nossa frente. Tudo tão igual, tudo tão diferente.
O Uruguai pôde traduzir tranquilamente o início de nossa expedição: simples. Compartilhamos nossos primeiros pedaços de terra, banheiros, tanques e varais para estendermos nossas roupas. Enfrentamos o relaxamento de alguns colegas de camping, que não se importavam em entupir uma pia ou privada, e aprendemos que a melhor comida é aquela que se tem pra comer. Panelas viraram pratos e garrafas viraram copos (viva simples e não tenha louça pra lavar). Reduzimos as idas ao banheiro, começamos a fazer trilha noturna com lanterna para escovarmos os dentes antes de dormir, repetimos muitas peças de roupa e enfrentamos frios de inverno nas noites a céu aberto.
Nossos perrengues foram os mais divertidos, afinal, sempre estamos nos fodendo, mas dessa vez escolhemos os lugares em que isso iria acontecer. A sensibilidade também mudou bastante. Estamos sempre entre dois abismos: a diversão e empolgação completas e o estresse sobrecarregado. Nossa rotina foi de, basicamente, 2 cidades por dia (ou seja: um acampamento montado e um desmontado a cada 24h), o que elevava o cansaço a um nível bem pesado. Perdemos a noção do tempo, pois, além de nunca estarmos com o celular na mão, rodamos muito por todos os lugares. Quando pensávamos que já tinham se passado dois dias do último acampamento, na verdade havia sido na manhã do mesmo dia. Mas contamos tudo isso sorrindo e gargalhando, afinal, se não tivéssemos passado por tantas alegrias, aventuras e desventuras: não teríamos motivos para ficarmos tão cansados.
Canibal, a terra celeste nos arrancou bons pedaços. E ver muita gente com propósitos muito similares aos nossos, serviu como uma energia extra para seguirmos ainda mais empolgados com destino a Ushuaia.
Gracias, Uruguai. E com toda certeza guardamos uns pedaços de nós para novas pernadas por lá.
#10 Canibalismo Uruguaio
Pedro Henrique Krug. Existe desde 1993, publicitário por formação. Está sempre com um livro na mão. Viajou diferentes universos com Kubrick, Lars Von Trier e Tarantino. Gosta de Beatles, mas também ouve Raimundos. Poderia ser filho de Alan Moore ou neto de Bukowski. Prefere os confeitos coloridos.

Pedro