#19 Tudo ou nada em San Pedro de Atacama
Após quase três meses de dias e noites vividos em campings, dentro da barraca e sem um endereço fixo, o destino final de nossa trip foi San Pedro de Atacama. Mais que um destino final, o Atacama em si era o local mais aguardado desde que fechamos as malas e completamos o primeiro tanque de gasolina. Por aqui, em nossas cabeças, milhares de coisas passaram, repassaram, se liquidificaram, modificaram e chegaram à salada de frutas mental que vivemos agora, enquanto o pobre-ser-vivente que vos escreve mal sabe interpretar as informações que passam pela cabeça, se transferem pelos vasos sanguíneos e chegam aos dedos um tanto cansados.
Algumas semanas atrás nos levariam ao início do trecho chamado deserto, que serviu de conteúdo para desertificar nossa percepção de areia, cactos e ausência de vida. Cruzamos bons quilômetros até chegarmos à La Serena. Mas antes disso nem chegamos a comentar, e muito menos perceber, a vida nômade e cigana que havíamos começado a viver desde que ingressamos novamente ao Chile. De um quintal cedido gentilmente pelo custo de 5.000 pesos chilenos, passamos ao jardim da maior rede de postos de gasolina do país (mesmo que com a possibilidade de acordarmos inundados pelo sistema de irrigação), e assim regredimos materialmente, e seguimos com nosso crescimento espiritual, aprimorado pelas noites seguidas deitados-sentados no banco do carro. Cozinhar escondidos na área de estacionamento de caminhões, como quem faz algo errado, havia virado rotina e hobbie inigualável. Banhos começaram a ser esquecidos e ignorados, pois os banheiros de postos-da-beira-da-ruta não eram convidativos, assim como o frio das noites deserticamente estreladas. Entre cada uma das noites nas estações de serviço, milhares de carros faziam companhia ao inocente e discreto Uno vermelho de placa quase indecifrável e encoberta pelas lamas de lugares que nos encheram de sorrisos. Nesse tempo, já beirávamos a incerteza. Na região de Atacama, a água que com esforço era utilizada diariamente para regar o solo árido, semanas antes trouxe o desespero que teriam formigas ao receberem em seu formigueiro incontroláveis balde d'água. O fato era esse: não sabíamos se conseguiríamos chegar à San Pedro. Recebemos informações tão cruzadas que quase fizemos um acróstico, mas no fim optamos por simplesmente embaralhar-las e seguir em frente com a maior dose de cautela possível. Cada vez que pegávamos a estrada, não sabíamos até onde seria possível chegar, e no pior dos pensamentos, seríamos deserdados por nosso meio de locomoção em uma de suas abstinências de gasolina. Cruzamos todos os pontos de parada sem nenhum dos possíves problemas que haviam nos alertado, assim inflando nossas expectativas e nos tornando confiantes em seguir a aventura na ruta que corta norte à sul do país-habitat das lhamas. Chegamos em San Pedro de Atacama e o estômago do deserto atacamenho quase nos engoliu vivos quando cruzamos os primeiros metros das ruas de barro, estreitas e de mão dupla, com as construções mais simples de toda a trip. O frio em nossas barrigas era a confirmação de que ali encontrávamos tudo o que nossas expectativas nos fizeram esperar. Não era de agora que os pequenos vilarejos eram percebidos como os maiores destinos. Quando estacionamos o carro e seguimos em uma primeira caminhada pela Calle Caracoles, mais uma explosão nuclear parecia estar próxima de nosso caminho: mochileiros e todos os tipos de rostos por todos os lados. Dos pés à cabeça: as combinações mais estranhas em contraste com a simplicidade dos vendedores indígenas e os marginais-bêbados detentores de terras de um dos principais destinos da América do Sul. Encontramos o camping mais barato da cidade (não por acaso o menos preparado e o que se levaria mais tempo para perceber que de fato era um camping), armamos acampamento e seguimos às curvas de barro da cidade mais atraente de todo o deserto. Em um dia: desvendamos todos os mistérios urbanos de San Pedro. Nos seguintes, preparamos nosso carro para iniciarmos as expedições que cercam a cidade. No Vale de la Muerte: nos sentimos em Marte, com a ausência de vida, rochas vermelhas e o céu em aquarela-azul friamente projetado. Na aldea Tulor: a trilha automotiva mais irada de todas as nossas desventuras. No Vale de la Luna: não poderia ser diferente: e de pelo menos um pedaço de lua preenchemos nossas mochilas. Curtimos a noite atacamenha de calça jeans e havaianas. Dormimos congelados depois de passarmos toda a tarde em um clima de chapa de padaria. Movemos nossos peões ao Salar de Atacama: dividimos espaço na casa de flamingos, fedemos a sal e refletimos sob os mais reluzentes espelhos d’água do deserto. Traídos pelo GPS, pegamos o atalho que nos colocou em duas horas de atraso. Atolados, provamos pela primeira vez da fúria do mais seco dos desertos: que já nos pedia uma oferenda para seguirmos no trançar de pernas e rodas por sua jurisdição. Do S.O.S veio o resgate-espontâneo-amigo, e de lá seguimos eufóricos às Lagunas Altiplânicas. Dos tubos de oxigênio, provamos o ar de mais de 4.000 metros de altitude. Perdemos o ar e equilibrio, mas não tombamos. Montanhas de neve, sal a gosto e lagunas verdes encheram nossos olhos e lentes. Cansados, sem fôlego e pouco aclimatados, ousamos em seguir em direção ao Passo Sico: e nas Águas Calientes vimos pedras vermelhas que nos transportavam aos cartoons-espaciais há muito não vistos.



Esse seria o último dia de passeios fora de San Pedro, o que nos fez regressar com um sentimento de tristeza e soterramento pela areia desértica. A trilha sonora que nos transportava alguns anos à frente, e já trazia às mentes nômades uma nostalgia das aventuras por ali vividas, era o White Album, dos sempre companheiros Ringão, John, Paul e George.
A coordenada exata de nosso acidente poderia ser descrita pelo quilômetro da ruta CH-23 em que nos encontrávamos, mas prefirimos defini-la como: aos exatos 1:15 da faixa “I’m so tired”, cantada como um sussurro pelos dois mochileiros que já pensavam em uma próxima trip pela América. Mesmo asfaltada, a rodovia repleta (e quase bloqueada) por grossas camadas de areia, nos fez perder o controle em uma curva não sinalizada e sem a presença dos anjos-da-guarda/guardrails ou acostamentos. Em baixa velocidade, capotamos em câmera lenta, sem em nenhum momento fecharmos os olhos. Tudo parecia ter acontecido em um segundo. Vidros dianteiros e traseiros: intactos, assim como nossos corpos e conciências. Saimos os dois pela porta do motorista. Olhamos desesperados nosso bagageiro espatifado em território de lhamas e lagartos. Para cima, a visão quase provocava náuseas: uma queda de quase 5 metros de altura. O sol já vinha descendo há alguns minutos, então pegamos os mais valiosos e necessários itens (entre eles: mochila das câmeras, documentos, dinheiro, casacos, lanterna e um galão de 5 litros d’água), escalamos o desfiladeiro desesperados e partimos em uma caminhada de quase 6 quilômetros até o vilarejo mais próximo.
Não parecia real, e o susto era tão grande que nenhuma dor fazia parte de nosso corpo. Ainda nos primeiros passos, lembramos de pegar o GPS e salvar a coordenada do local do acidente. Trememos após quase 30 minutos caminhando sem nenhuma alma-viva cruzar nosso caminho. O povoado que antes parecia próximo, a cada passo parecia mais distante, e com a lembrança do esquecimento de nossa barraca reserva, veio o medo de não termos onde acampar em caso de precisarmos armar um abrigo de emergência durante uma noite congelante e com tempestades de areia no meio do deserto. Com o céu quase se tornando escuro, finalmente havistamos de perto a placa que indicava a pequena vila de Socaire. Ouvidos atentos: ouvimos o som de algum carro que descia a ruta assim como nós. Demos sinal de luz e assustados pedimos por ajuda. A figura sem nome não hablava espanhol e conversando em inglês seu sotaque não entregava nacionalidade. O que esperávamos era uma carona de volta à San Pedro, mas ganhamos mais que isso: o gentil e risonho cidadão, agora com nacionalidade identificada: alemão (ainda não entendemos por que diabos ele achava toda a situação tão engraçada) se ofereceu a voltar ao local do acidente para que pudéssemos recuperar o máximo de coisas que haviam ficado no carro. Lá chegamos junto aos últimos raios de sol, pegamos algumas caixas com fogareiros e um estoque de comida, uma pequena sacola com roupas, o colchão de nossa barraca e uma mochila repleta de coisas que até o momento não sabíamos o que poderiam ser. Quando partíamos do nosso novo cenário de futuros pesadelos, uma camionete branca reduzia velocidade até parar para olhar o carro fora da pista. Num segundo percebemos quem eram: os funcionários das Lagunas Altiplânicas. Não foi difícil remeter a imagem deles à segurança, afinal: eram funcionários da CONAF (administradora dos parques nacionais do Chile). Pareciam preocupados, e inclusive se disponibilizaram a ligar para a polícia local. Pegaram celulares, chamaram (ou ao menos nos passaram essa informação) e disseram que os Carabineros (como é chamada a polícia de lá) não poderiam vir ao local do acidente, então teríamos que seguir 50km até a primeira delegacia de polícia, em Toconao (estávamos no quilômetro 200 da ruta CH-23, a quase 100 quilômetros de distância do centro de San Pedro de Atacama). Os dois viajantes e o alemão risonho seguiram em jornada policial, já os trabalhadores-muito-suspeitos continuaram por lá, preparados com lanternas nas mãos.
Pedro Henrique Krug. Existe desde 1993, publicitário por formação. Está sempre com um livro na mão. Viajou diferentes universos com Kubrick, Lars Von Trier e Tarantino. Gosta de Beatles, mas também ouve Raimundos. Poderia ser filho de Alan Moore ou neto de Bukowski. Prefere os confeitos coloridos.

Pedro
Percorridos 50km, uma polícia nada preparada nos recepciona sem nenhuma preocupação (com o acidente ou nosso estado físico-mental pós-acidente), e mesmo explicando que tudo ocorreu longe dali e muitos pertences permaneciam no carro, nenhum suporte ou assistência nos foi oferecido. Nos enrolam por duas horas, sem saber interpretar uma carteira de identidade ou a papelada de um seguro automotivo. Com meia folha A4 preenchida com informações confusas sobre o ocorrido, nos colocam no telefone com o dono de um guincho: obviamente pouco se pôde entender. Demonstramos preocupação, mas o que ganhamos veio em uma resposta em claro e bom tom oficial: vão tranquilos à San Pedro, contratem o guincho e está tudo feito.
Resolvi seguir até o estacionamento municipal atrás de algum veículo brasileiro, na esperança que o compatriotismo fosse imperar no momento. Nada de brasileiros por lá, e uma raiva de não termos conseguido solucionar tudo na noite anterior começa a fazer parte do estado de espírito. Quando voltava pro camping, outra possível ideia genial: havíamos conhecido um maluco-viajante motociclista em alguma cidade mais ao sul do Chile (ele viajava com uma pequena scooter e um gatinho recém nascido). Seu destino final também era San Pedro, onde tinha um Café Bar (Conheça o Café Esquina, o único lugar do Atacama que você toma café e conversa sobre arqueologia). Chegando ao café, expliquei toda a situação e recebi uma resposta semi-positiva: “Só um pouquinho, vou tentar arrumar alguém para te levar pra lá”. Enquanto aguardava, um grupo de três pessoas em uma mesa pergunta: “Ei, você é brasileiro?”, “Caralho, mas é claro que sou! E puta que pariu, que ótimo ouvir a voz de mais brasileiros por aqui!” (isso só fez parte do imaginário do viajante). O pessoal já havia ouvido toda a história, se sensibilizou com nosso caso e ofereceu gastar algumas horas que seriam investidas em passeios para retornarmos ao local do acidente.
No meio do caminho, entre nossos lamentos e motivações do casal de heróis canarinhos, descobrimos que eles estavam em uma trip bem similar à nossa: só que de bike, e com previsão de passarem um ano na estrada (Conheça o Ernesto, a Ana e A Tal Viagem, vai!). Trocamos dicas e dividimos vivências, e o positivismo tomou conta de uma pick up alugada por mais de R$400 a diária. Quando chegamos ao destino (os 1:15 de “I’m so Tired”), não conseguimos acreditar no que vimos: todas as portas do carro estavam abertas (incluindo a porta do passageiro e o porta-malas, que com a colisão acabaram emperradas). Descemos desesperados atrás de nossas malas: nada. Do carro, apenas uma roda ainda restava para contar as histórias vividas nos mais diferentes terrenos que passara por esses quatro países. Perdemos todas nossas roupas, casacos, alguns tênis e botas, óculos, um kit de cadeiras e mesa de camping, mais uma caixa repleta de utensílios de cozinha e o pior: as lembranças que todas essas coisas nos trariam. Fomos estuprados mental e materialmente pelo povo que se vende como artigo histórico e arqueológico. O mais bizarro disso tudo foi que tudo foi bizarro: nada foi deixado pra trás (sacolas de camisetas, cuecas e calcinhas sujas, remédios, shampoos e sabonetes usados). Do pobre Uno, que sempre ficava vermelho quando se metia entre motorhomes e caminhões-quase-tanques-de-guerra, não foram medidos esforços para desmantelá-lo: tapetes, bateria, recipiente do líquido de freios, bancos e dignidade foram arrancados como se dois mochileiros não tivessem colocado sua coleira de idenificação. Entre os itens furtados, um deles mereceu atenção e repúdio: Um exemplar de Ereções, Ejaculações e Exibicionismos, com algumas centenas de contos do peso pesado Bukowski (na porra da linguagem universalmente apenas compreendida no: BRASIL). Que o velho safado esporre muito nas noites de sonos e sonhos Atacamenhas! Com um espírito de Chinaski, regressamos à San Pedro de Atacama com um banho de água escaldante jogado em nosso esqueleto. Precisávamos fazer um segundo B.O, dessa vez relatando os itens furtados pelos índios travestidos de comunidade simples e receptiva aos turistas de todo o mundo, you know?
Seguimos aos Carabineros de San Pedro e lá fomos tratados feito o gado que ultrapassa as cercas e segue o aroma vindo da cozinha da pequena casa-de-granja. Em primeiro momento negaram nos atender, mas depois de muito esforço e uma dose de sarcasmo castellana, conseguimos que nosso registro fosse feito. Desrespeito, falta de paciência e o completo despreparo da polícia local são os itens máximos que um turista conseguirá desfrutar em uma delegacia no meio do deserto chileno. “Quantos pneus foram furtados?”, não demorei a responder que foram três, mas o próximo item da lista foi o pneu de step, então o patrulheiro do deserto me devolve: “então foram quatro?”, e o escritor mochileiro, em reflexo, concorda, vem mais uma réplica do farda-verde: “se decida”. Vá te foder, porra, eles que se decidam sobre o quanto roubarão de nós! Depois de entendermos que policial não se trata apenas com respeito, passamos por diálagos repletos de farpas até que saímos com o B.O em mãos. Chegando no camping, havistamos um guincho em frente à nossa casa provisória, então corremos e de lá o guicheiro segue em fuga até o local do acidente. Poderia ignorar e me poupar de descrever a acompanhante do guincheiro, uma recém-adulta de pouco mais que 20 anos, fazendo par com um Velho Buk chileno que já rodou mais de 50 anos de mundo. Os dois seguiam de mãos dadas em carícias ao câmbio do caminhão, com tapinhas e beijos no rosto, e alguns cigarros e balas de menta que aromatizavam a cabine do horror. Percorremos os 100km até chegarmos ao barranco dos 1:15 de “I’m so tired”, e lá estava uma pick up verde parada e semi-abandonada (se não fosse a velha índia que dava o alerta aos urubus que desfrutavam do banquete que era a carcaça do desfigurado Uno). O sangue subiu e o desaforo tomou conta de nossas cabeças. Perguntamos o que eles faziam ali, e recebemos as desculpas mais esfarrapadas possíveis: “Uh, paramos porque ficamos curiosos. Só estávamos descendo do Paso Sico, lá fomos pegar algumas plantinhas para levar à Calama”. É, véia, o pueblo dessa região é muito curioso, e os carros feitos no Brasil devem ser tão diferentes, que ficaram curiosos e levaram as rodas, a bateria e tudo que puderam antes do primeiro raio de sol. Mas se quiserem, ainda podem pegar alguma das portas! Partiram assustados, e praguejamos sobre as chuvas que há pouco afetaram a região do Atacama. Nosso guincheiro não teve dúvidas: o carro sofreu perda total, e não tinha chance de ser retirado por um guincho comum. Antes de voltar à San Pedro, a mochileira arretada fez o pedido que transformou nossa saga em uma desventura-cinematográfica: “puedes nos dar 5 minutos nel pueblo de Socaire? solamente para mirarmos”. Passamos pelo povoado e pedimos informações para a primeira (alma-viva) moradora que vimos pela frente. Com mais sorte do que juízo, ela diz que viu a camionete dos trabalhadores das Lagunas Altiplânicas chegando no vilarejo com nossas malas. É, descobrimos que havíamos sido enganados pelo povo que minutos antes cobrava nossa entrada em um dos Parques Nacionais. Funcionários do governo ou índios do inferno? As pragas jogadas pelas ciganas de Viña del Mar e La Serena caíram dentro de nossas mochilas e de lá seguiram para dentro do carro. Conseguimos os nomes dos trabalhadores e as coordenadas de onde seria a casa em que estariam nossos pertences. Quando batemos à porta, a fina camada de alúminio que mantia o local fechado, se abriu. A casa era de barro, com chão de areia e teto de alumínio revestido com algumas camadas de mosquitos. Sem luz, e completamente abandonada, quando olhamos para dentro vimos, entre pilhas e pilhas de roupas: nosso tripé. Filhos da puta. A vontade era vasculhar cada canto do casébre até que o que restava de nossos pertences fosse aos poucos aparecendo, mas sem saber se alguém havia nos visto, pegamos o tripé, fotografamos o local e seguimos correndo até nosso guincho-carro-de-fuga. Euforia. Tínhamos a evidência que faltava para finalmente denunciar os responsáveis pelo furto.
Não acreditavam que a polícia fosse fazer algo por nós, mas seguimos novamente à Toconao, onde feito um ringue de galos, duelamos contra a negligência dos Carabineros de Chile. Antes dos próximos fatos, não poderiam deixar de ser citados alguns pensamentos do chefe de policia local: “Queriam que a gente voltasse ao local do acidente? De noite? Policial também tem que dormir!”, “Ah, não reclamem, porque no Brasil nós também seríamos tratados desse jeito”. E só depois de ameaçados com uma possível denúncia por negligência na noite do acidente, resolveram de fato colocar o boné na cabeça e largar a tv à cabo da delegacia para seguir em um pouco de ação com os hermanos brasileños. E assim, depois de quase uma hora e meia, nos despedimos de nosso guincho (deixando avisado que seguiríamos com a polícia, e se não tivessem notícias nossas… cês sabem!) e seguimos com uma pick up 4x4 recheada de armas até o pueblo de Socaire. Quando chegamos na casa antes abandonada, pelo menos três pessoas já vigiavam o lado de fora, com um pequeno portão bloqueado por uma camionete. Quem conversou com os Carabineros foi a mãe da suspeita que nomeamos à polícia. Quando questionada sobre o tripé, ao invés de negar, veio a prova: “ah, realmente minha filha pegou, mas foi só para guardar pra eles”. Ah, é? E também pegou as rodas e a baterias, porra? Os militares perguntaram sobre as malas, e bum: “Ih, mas malas é só minha filha que sabe…”. Dois tiros certeiros, e ganhamos a confiançaa dos oficiais do Chile. Vasculhamos a casa com permissão da senhora rechonchuda, mas como já haviam se passado duas horas, muitos coelhos devem ter voltado para suas tocas e cartolas. Antes de irmos embora, fomos acusados de roubo pela dona de casa, que afirmava ter dinheiro e uma câmera lá dentro. Batemos boca enquanto os carabineros tinham um sorriso no canto do rosto. A câmera foi encontrada dentro da casa, então agradecemos pela “hospitalidade” destinada ao nosso tripé, nos desculpamos pelo incômodo e partimos às Lagunas Altiplânicas, atrás de Maythe Plaza Plaza (filha) e Patricio de Varas (genro).
O grande problema de toda a saga é que de um ponto à outro a distância sempre ultrapassava a casa dos 40 minutos. Então, até chegarmos às Lagunas, com toda a certeza os trabalhadores já estavam avisados e sabiam o roteiro exato do que teriam que falar. No meio do caminho nossa ficha caiu, e resolvemos perguntar se no dia do acidente os Carabineiros haviam recebido um chamado dos trabalhadores: “Não recebemos nada! Eles mandaram vocês seguirem até Toconao pra ter tempo suficiente de saquear todo o carro”. Chegando lá, ver a camionete branca e os trabalhadores que fingiram prestar socorro serviu como uma boa dose de repúdio. Dessa vez não fomos autorizados a descer do veículo, e Patrício foi rapidamente fichado, mas alegou que não sabia de nada, deixando a responsabilidade para sua esposa. Com vista para a laguna Miscanti, encontramos uma Maythe nada surpresa com a presença da polícia, e assim começou a parte mais dura do interrogatório: “Me explica como esse tripé foi parar na tua casa!”, “Ah, foi só o tripé? Mas tu sabe que se foi só isso ou se foram todas as coisas do carro é um crime, certo?”, “Olha, eles só querem as roupas deles. Diz onde tão as malas e não acontece nada pra ninguém”, “Que merda, tu não vai colaborar?”. Depois desse sacode-psicológiico por parte do comandante, a guria mostrou ser realmente filha da velha rechonchuda, e dessa vez entregou o irmão: “Olha, o que eu sei é que eram umas 4h da manhã, meu irmão foi na minha casa e pediu dinheiro pra colocar gasolina na camionete e voltar no lugar do acidente e roubar as peças do carro”. É sério isso? Formação de quadrilha indígena em pleno Deserto do Atacama? Maythe cagueta falou pouco mais que isso, tirou o dela da reta e nos fez seguir novamente ao vilarejo. Mais 40 minutos se passaram, e quando chegamos ao vilarejo, mais pessoas tomavam conta das ruas antes desérticas. Por lá, os Carabineros tinham alguns informantes de confiança, afinal, é uma região que faz parte da rota do narcotráfico boliviano. E assim conseguimos duas ou três dicas ao longo do caminho, todos sem pensar duas vezes antes de apontar a família Plaza Plaza como saqueadores do Uno canarinho (e mais: afirmaram que é recorrente que a família faça isso, contando com todo um esquema de desova e armazenamento das peças e mercadorias roubadas). Subimos e descemos morros e estradas castigadas pelo clima seco, fizemos alguns batidões em casas que mais pareciam ferros-velhos, mas sem um mandado judicial: nenhuma possibilidade de entrarmos nas casas. Nesse caminho, consumimos um pouco da pobreza e ausência de recursos que os povoados habitantes do deserto enfrentam: casas com chuveiro são luxo compartilhado com os vizinhos, bem como os itens angariados dos veículos desmantelados. Mais de três horas passadas em um zigue-zague entre laguna e pueblo, com os policiais sabendo quem eram os responsáveis pelo furto mas sem poder seguir adiante na investigação, com uma curtida em nossa página do facebook feita pelo policial-novato-e-bem-encarado que se interessou pelo projeto, os Carabineros de Chile (“Amigos sempre”, aham.), resolveram encerrar nossa desventura pelo deserto. Pegaram todos nossos dados e contatos, avisaram que assim que tivessem novidades nos contatariam, pararam o primeiro veículo de passeio que cruzou a ruta CH-23 e pediram gentilmente (com o auxílio de uma bela farda esverdeada) se poderiam nos levar de volta à San Pedro.
Mesmo com as fotos da depena do carro, nosso seguro afirmou que precisaria retirar o veículo e fazer uma avaliação e orçamento dos estragos, e só assim poderia ser atestada a perda total. Enquanto aguardávamos o caminhão pluma, resolvemos seguir ao CONAF (responsável pela organização e manutenção dos parques nacionais do Chile) e fizemos uma denúncia sobre o hobbie dos trablhadores indígenas. Lá, pela primeira vez, fomos super bem recebidos, mas não puderam fazer muito por nós (a organização não conta com um departamento jurídico para realizar uma investigação), então encaminharam a causa ao advogado e também ficaram com nosso contato.

Nossos dias de tédio começaram aqui. O caminhão pluma passou por San Pedro somente para nos avisar que retiraria o veículo e deixaria na fronteira com a Argentina. Depois de mais dois dias o guincheiro retorna com o aviso de que não conseguiu cruzar a fronteira, afinal, o gênio-chileno esqueceu de pegar a documentação necessária para apresentar na Aduana. Nesse meio tempo, nosso amigo e dono do Café nos tornou sub-celebridades da principal cidade do Deserto do Atacama, depois de algumas postagens no facebook com fotos do carro desmantelado, dos dois pobres mochileiros e informações sobre os ladrones e índios-quando-convém. À Christian Tarantola, que nos consolou com todas as lições de karma e umas chícaras de café: toda a gratidão que cabe na mochila. Também recebemos muito apoio dos brasileiros e franceses que dividiram cozinha, camping e sonhos, durante o período que ficamos de castigo, esperando qualquer contato do seguro que avaliava a forma de nos tirar do deserto. O guincho veio, pegou os documentos do carro e aduana e seguiu à fronteira. Mais três dias de castigo, tédio e solidão coletiva até que é definida nossa data e meio de transporte de volta: na noite seguinte, de avião, com três escalas até chegarmos em Santa Catarina.
Do contanto com a seguradora na manhã seguinte ao acidente, até o dia em que deixamos o camping, foram 10 tortuosos e alegres dias em solo Atacamenho, e mais nenhuma notícia ou posição por parte da polícia local ou da CONAF foi encaminhada pra nós (nosso caso virou arquivo morto, ou simplesmente soterrado e devorado pelos abutres do deserto). Comemos o pão que o diabo amassou, nos prendemos em uma barraca armada no estacionamento do camping (afinal, a área de camping foi alagada pelo sistema de irrigação do rio San Pedro) e saímos nos sentindo um pouco cidadãos do deserto, acordando cedo todos os dias para comprar pão e água, saindo em caminhadas para ver o pôr do sol e os vulcões sem ser abordados pelos infinitos vendedores de passeios turísticos, e pensando: porra, que isso não acabe nunca! Tentamos nos entregar ao deserto, mas em nossa décima terceira noite por lá, tivemos que deixar San Pedro de Atacama às pressas, levados de guincho ao aeroporto de Calama (com uma hora e meia para a saída do vôo, e pelo menos uma hora e quinze de estrada).



De volta ao nosso refúgio, nunca vimos nossa barraca tão cheia, pois dessa vez todas
as coisas que de fato tínhamos estavam ali. Contatamos o guincheiro e ele nos afirma ser impossível retirar o veículo com um guincho simples: seria necessário um caminhão pluma, para retirá-lo por cima. O único responsável por esse tipo de serviço na cidade foi também contatado: fora de serviço, pois seu pai havia acabado de falecer. Gentilmente confortados pelos funcionários do camping, seguimos para uma difícil noite de sono, que terminaria ainda antes dos primeiros raios de sol.
Pela manhã, tivemos uma ideia que poderia nos levar de volta ao carro, e esperávamos que tudo que havíamos deixado ainda estivesse por lá. Como conseguimos resgatar um galão de 20 litros de gasolina, oferecemos ele como moeda de troca para uma carona solidária. Só obtivemos respostas negativas ou propostas um tanto quanto gananciosas: 70.000 pesos pela ida+volta (o equivalente a quase R$400). Aí o desespero apareceu.



