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Um dia é da caça, o outro do caçador. Ou ao menos foi isso que ouvimos de um mochileiro da antiga União Soviética, enquanto inciávamos nossa jornada em uma estrada de areia e muitas pedras, com destino a Cueva de Las Manos.

 

Já dirigíamos por mais de duas horas pela famosa Ruta 40, quando um fim de tarde pintava o céu em tons rosa-azulados. No menor vilarejo do país, Bajo Caracoles, fizemos uma pausa para completar o tanque, mas não esperávamos nos deparar com uma cidade fantasma. As bombas de gasolina, além de secas, não pareciam receber visita de algum frentista há um bom tempo. A delegacia estava no escuro, como quase todos os casebres que preenchiam a beira da estrada. A exeção era um bar e loft, iluminado em um branco que ofuscava a visão. Fui lá dentro sozinho, ganhei olhares tortos de pés que cambaleavam para encontrar o caminho do banheiro. Perguntei por combustível, mas pelo jeito era a maneira que caminhoneiros da Patagônia utilizavam para conseguir alguma chica safada no quarto do andar de cima. Todos com caras redondas e amareladas, barba por fazer e cigarro entre os dedos. Num castellano pesado, trocaram susurros e me mandaram pra fora.

 

Era tarde, precisávamos de um lugar para dormir. Ali não parecia a melhor opção, então optamos por seguir à Cueva de Las Manos, um dos maiores sítios arqueológicos da América do Sul. Sabíamos que o local já estaria fechado, mas seríamos os primeiros visitantes pela manhã. Eram 30 quilômetros de uma estrada castigada pelo clima da região, e o medo de furar um pneu durante o trajeto era algo difícil de tirar de nossas cabeças. Como sempre, conversávamos enquanto Alt-J fazia nossa trilha de fundo. Em nossa mente: Bukowski, e um dos contos do primeiro volume de Crônica de um Amor Louco, Maquina de Foder. Se não fosse em uma Nova York pós-apocalíptica, toda aquela podridão só poderia acontecer aqui, no fim da Patagônia Argentina.

 

Nos distraímos na estrada, e um mochileiro de cabelos longos cobertos por uma toca, barba que tocava o peito, roupas em trapos e mochila sobrecarregada quase passou despercebido. Ele estendia o polegar enquanto uma mistura de loucura e sofrimento se misturavam na sua face. Quando encostamos o carro, um sorriso afetuoso tomou conta da antiga expressão. Trocamos algumas palavras em inglês e resolvemos dar uma carona para o viajante que seguia para o mesmo destino.

 

O sotaque era forte, inegável que tinha raíz russa. Mas em nenhum momento ficamos sabendo de que país ele de fato pertencia. Extremamente patriótico, sempre dava um jeito de mencionar a antiga União Soviética entre um pensamento e outro. Ele estava em um mochilão de volta ao mundo, havia partido do antigo continente e já percorrido Àsia, Àfrica e Oceania, em mais de 3 anos de trip, sempre vivendo de caronas. Na Argentina, pra conseguir um dinheiro e estender a viagem pela América do Sul até o Parque Nacional Torres del Paine, se envolveu em um esquema de distribuição de lsd no festival Lollapalooza, enquanto estava em Buenos Aires. A grana realmente entrou, mas no último dia do evento a polícia armou um esquema e conseguiu fichar vários envolvidos. Ele não foi pego, mas como era quem coordenava todo o sistema, teve sua identidade entregue pelos boludos porteños. Daí em diante ele se transformou no andarilho que encontramos, camuflado entre barba e cabelo, pipocando de vilarejo em vilarejo enquanto percorria a Patagônia.

 

Não dá pra se dizer que ele não se meteu em mais problemas. Inclusive, do último ele acabará de sair. As luzes do loft em Bajo Caracoles o atraíram, ele conseguiu o quarto e a chica. Tinha tomado algumas doses no bar e era a hora de tirar o atraso. A guria demonstrava prazer, se dedicava ao máximo na profissão. Pediu alguns tapas, ele não conseguiu controlar a força e ela, arqueada em cima do torso peludo, acabou despencando no chão. Ele mesmo acabou o serviço, virou para o lado e pegou no sono. No dia seguinte acordou assustado, aos poucos as memórias preenchiam a mente. Bateram à porta, procuravam Lola. Ele colocouou a mochila nas costas e fugiu pela janela. Deixou mais uma marca na Argentina. De tão primitivo que se sentia, pensou que na Cueva de Las Manos teria uma conexão com um eu perdido no tempo.

 

Cada palavra saía sem vergonha, era como se tudo tivesse que ter simplesmente acontecido, sem que ele pudesse alterar o curso de suas ações. Pediu para pararmos o carro, queria armar acampamento no meio da estrada. Nos agradeceu como se tivéssemos salvo sua vida e saiu aos uivos, pensando na caminhada que faria na manhã seguinte.

Mais um amigo, mais uma história, mais um dia na estrada: hoje foi dia do caçador.

#21 Um dia é da caça, o outro do caçador.

Pedro Henrique Krug. Existe desde 1993, publicitário por formação. Está sempre com um livro na mão. Viajou diferentes universos com Kubrick, Lars Von Trier e Tarantino. Gosta de Beatles, mas também ouve Raimundos. Poderia ser filho de Alan Moore ou neto de Bukowski. Prefere os confeitos coloridos.

 

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Pedro

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